quarta-feira, 1 de junho de 2011

Xing Yi: uma arte Marcial taoísta?

Gostaria de abordar aqui uma questão polêmica, que é a da suposta "origem taoísta" do Xing Yi Quan, Xing Yi Chuan ou Xing Yi Tchuen. Em vários sites e até em certos livros lemos que o Xing Yi, o Ba-Gua e o Tai-Chi são as três "artes internas" do Kung Fu, e que teriam as três artes se originado da cultura taoísta, do lendário templo de Wudang.
Primeiramente, é preciso compreender que não existem "artes marciais exotéricas" (externas) e "artes marciais esotéricas" (internas). Artes marciais são artes marciais. O treinamento de um indivíduo é que pode ser mais focado no externo (exotérico) ou no interno (esotérico).
Os exercícios de Chi Kung, que são voltados para o "desenvolvimento interno" ou seja, o desenvolvimento do Chi, na tradição marcial chinesa, podem servir tanto para a meditação, para melhorar a saúde ou para o simples combate prático direto. E eles existem em todas as artes marciais chinesas conhecidas.
Em segundo lugar, é preciso compreender que a associação entre o aspecto "interno" do treino do artista marcial e o taoísmo, e entre o aspecto "externo" e o budismo não tem nenhum fundamento histórico. Se estudarmos a história dessa duas grandes religiões, todas elas desenvolveram métodos de meditação, respiração e outros que podem ser considerados "internos".

Segundo Brian Kennedy e Elisabeth Guo (2005, p.78 e 80):

“O esquema de classificação entre artes marciais chinesas internas e externas tem causado uma longa série de controvérsias e debates onde e quando é utilizado. De acordo com esse esquema, as artes marciais chinesas ou são externas ou internas, sendo que as externas seriam as mais pesadas, e as internas as mais leves. Essa distinção sustenta-se sobre a idéia de que um sistema de arte marcial irá priorizar ou o desenvolvimento da força externa ou o desenvolvimento da força interna, o que geralmente reduz-se a: esse ou aquele sistema dá ênfase no desenvolvimento do Qui (Chi) ou não? Outras vezes, tal classificação sugere que as artes internas são mais defensivas, ao passo que as externas são mais ofensivas.
Nesse esquema de classificação, artes como o Xing Yi, o Ba Gua e o Tai Chi são os três principais estilos internos. Todos os outros são externos. Isso tem relações com o esquema Wudang versus Shaolim.
O problema com o esquema estilos externos versus estilos internos é que ele é uma falsa dicotomia. Praticantes de Xing Yi utilizam muitos exercícios de força externa. De uma forma similar, o Hung Gar – considerado um estilo externo – possui um sistema de treinamento inteiro, o “Iron Wire Set” devotado ao treinamento interno. Na verdade, qualquer sistema completo de arte marcial chinesa possui elementos de treinamento externo e interno. Além do mais, esse esquema de classificação de artes internas e externas é recente dentro da história, tendo sido utilizado pela primeira vez na era Qing e no período republicano.”
No mesmo livro, os autores observam como esse esquema errôneo de divisão entre "artes internas" e "artes externas" está associado a dois outros esquemas de classificação: a divisão entre estilos do norte e estilos do sul e a divisão entre artes marciais chinesas budistas e taoístas.

Com relação a esse esquema, ele diz (op, cit, p.83):

“Existe um conjunto final de mal entendidos populares. Frequentemente fala-se em livros e artigos sobre “artes marciais taoístas” ou “artes marciais budistas”, sugerindo que existem certas conexões entre religião, filosofia e artes marciais. Por exemplo, o Tai Chi Chuan é geralmente chamado de “arte marcial taoísta” e é por esse motivo associado com a religião como uma corporificação da filosofia taoísta. De uma maneira similar, muitos sistemas marciais de Shaolim são vistos como um método de treinamento religioso budista, um tipo de “meditação em movimento”. Essa idéia, a qual consiste no centro da noção da relação entre artes marciais e pensamento “new age”, é na verdade bastante recente na história, e é oriunda do ocidente. Na era Qing chinesa, as artes marciais eram vistas simplesmente como técnicas não muito diferentes das técnicas de um pedreiro. Eu tenho a forte impressão de que se você perguntasse para qualquer artista marcial da era Qing se existem artes marciais taoístas ou budistas ele olharia para você como se você fosse louco. Sua resposta provavelmente seria “artes marciais são artes marciais, religiões são religiões, e as duas não tem conexão”. E ele estaria certo. Para fazer uma analogia, imagine aproximar-se de um caçador e perguntar “essa sua Winchester calibre 30 é um rifle protestante ou católico?”. Como os artistas marciais da era Qing, ele poderia considerá-lo louco. Existem muitas maneiras de categorizar um rifle: ação leve ou ação pesada, automático ou semi-automático, por exemplo. Categorizá-lo como religioso ou filosófico não teria sentido nenhum (...)"

"Esse esquema de classificação é de inspiração muito mais romântica do que baseado na realidade. Embora seja verdade que as montanhas Wudang foram lar para um grande número de templos taoístas, é igualmente verdade que nenhum dos três estilos chamados de taoístas (Xing Yi, Ba Gua e Tai Ji) tiveram o seu desenvolvimento nessa região. Da mesma forma, embora exista um templo Shaolim, é incorreto dizer que ele é o local de origem e de desenvolvimento de todas as outras artes marciais chinesas além das três supostamente atribuídas como originárias de Wudang." (p.83)

"Esse esquema de classificação foi usado pela primeira vez pela Academia Nacional de Kuoshu em 1920 como uma maneira genérica de divisão para os muitos sistemas de artes marciais que estavam sendo ensinados no interior de dois grandes grupos. Como a vertente supostamente atribuída a Wudang (O Tai Chi, o Ba Gua e o Xing Yi) tornaram-se um dos grupos é uma história complicada. A maior parte dos motivos que levaram a isso devem-se às relações de amizades entre mestres e aos laços e vínculos de
lealdade que levaram à criação de um grupo no final do século 19, cujos membros nomearam a si mesmos como professores das “artes marciais de Wudang."

No caso do Xing Yi Tchuen, a figura histórica que fazia parte desse grupo era um mestre de Xing Yi chamado Sun Lu Tang.

Sun Lutang (1860-1933) era um grande estudioso dos classicos Confucionistas, do I Ching e do Tao Te King. Ele foi para as montanhas de Wudang em 1894 para estudar a filosofia Taoista e metodos de auto-cultivação (exercicios de Chi Kung taoistas). Nessa época (fim do sec. XIX) as montanhas de Wudang era um dos centros mais conhecidos e importantes para o estudo do Taoismo. Sun Lu Tang mesclou então varias ideias e conceitos do Taoismo com o Xing Yi Tchuen, e também com o Tai Chi e o Pa-Kua. Assim, por exemplo, as técnicas elementares dos cinco punhos, presentes no currículo básico de qualquer praticante de Xing Yi, tornaram-se uma metáfora dos cinco elementos da cosmologia esotérica taoísta, e assim por diante.
Outro que apoiou e ajudou muito Sun Lutang foi Li Cun Yi, que era "irmao" de Sun Lu Tang pelos dois terem aprendido Xing Yi Tchuen com Li Luoneng. Os dois formaram um grupo com outros mestres de Tai Chi e Ba-Gua para adotar a ideia que esses estilos eram internos, eram relacionadas ao Taoismo e que vinham do Templo Wudang, para se distiguirem das outras escolas de artes marciais chinesas que existiam na época. Isso se propagou pelos anos 20 e 30, com varios livros citando essas idéias: Baguaquan Xue (Estudo do Boxe de Bagua), Bagua Jian Xue (Estudo da Espada Bagua), Xingyiquan Xue (Estudo do Boxe Xingyi), Tajiquan Xue (Estudo do Boxe Taiji) e Quanyi Shuzhen (Explicacao da Essencia do Boxe), etc. A partir daí, das observações contidas nesses livros, escritas por Sun Lu Tang, seus alunos e dmiradores começaram a propagar a falsa história que o Xing Yi o Ba-Gua e o Tai Chi teriam tido sua “origem” no templo de Wudang.

Claro que Sun Lu Tang e Li Cun Yi se inspiraram em um precursor para fazer relações entre arte marcial e esoterismo. Um mestre mais antigo chamado Chang Naizhhou (1724-1783) começara antes deles a fazer certas conexões entre os conceitos de Chi e as teorias do I Ching. O livro que ele publicou (em 1781) tinha duas partes, Peiyang Zhong Qi Lun (Teoria de Nutrir o Qi Central) e Wubei Cankao (Referencias Marciais). Ele criou o sistema Chang Shi Wuji (Boxe da Familia Chang) usando o conceito de Zhong Qi (Qi Central) como a ideia principal do sistema.No entanto, ele ainda pregava o uso marcial das artes marciais chinesas, e não sustentava a idéia de que um artista marcial poderia desenvolver arte marcial focando-se apenas nos exercícios para desenvolvimento "interno".


Mesmo Sun Lu Tang, apesar de ter estudado em Wudang e relacionado arte marcial com taoísmo, nunca pregou que a arte marcial por si só pudesse conduzir alguém à iluminação espiritual, ou que devesse se limitar a uma prática terapêutica voltada apenas para ter boa saúde.  O que ele pregava, pelo contrário, é que era importante nao só aprender o lado civil (wen), por estudos e pesquisa, como tambem o lado marcial (wu) por pratica e aplicação. Mesmo assim, passou a ser erroneamente visto por muitos como o introdutor da idéia da prática das Artes Marciais apenas para a saúde.

No mesmo livro citado acima, Brian Kennedy e Elisabeth Guo afirmam:

(...) A verdadeira base da divisão Shaolim versus Wudang foi simplesmente a formação de um grupo que incluísse as crenças religiosas de Sun Lu Tang e de Li Cun Yi. Eles precisavam de uma simbologia para distinguir eles e seus sistemas de artes marciais de outros grupos e sistema. O rótulo que utilizaram para isso foi arbitrário.”

Dessa maneira, Sun Lu Tang e Li Cun Yi inventaram que o Tai Chi, o Pa Kua e o Xing Yi eram três artes marciais originadas do templo taoísta de Wudang, e ligadas à cultura taoísta. Mas inventaram essa inverdade para criar um "mito fundador" que os ajudasse a propagar a metodologia de ensino e a abordagem de sua escola, e não para que essa ficção fosse divulgada até os dias de hoje e passasse a constar em livros e sites como se fosse a verdadeira versão dos fatos.

Não é difícil compreender porque essa idéia da relação entre arte marcial e espiritualidade tornou-se tão popular, tão propagada e até os dias de hoje desperte tantos interesses.

O historiador Stanley Henning (1981) afirma:"a ênfase no “espiritual” nas artes marciais parece ter crescido nas mentes das pessoas na mesma proporção da diminuição da relevância de seu propósito original”.

Ainda segundo Kennedy e Guo (op cit, p.85):

"A idéia de que as artes marciais chinesas estejam ligadas às filosofias budista e taoísta surgiu quando as artes marciais perderam o seu uso prático, e começaram a ser praticadas como uma forma de recreação para as classes média e alta. Esse processo começou no final do seculo 19, e acelerou-se com o início da era Republicana (1912)." (...) Para melhorar a imagem de suas artes, professores começaram a relacionar o estudo da filosofia chinesa com o estudo e a prática de seus estilos. (...) Essa mistura entre filosofia e exercícios para a saúde tornaram as artes marciais mais palatáveis e atraentes para a classe média chinesa emergente nos anos de 1900."

Assim, o misticismo e a espiritualidade apareceram como elementos que se agregaram às artes marciais à medida em que o seu caráter mais pragmático, voltado para o uso prático nas guerras, perdeu gradualmente a sua relevância para as classes mais altas e favorecidas. Em paralelo a isso, uma série de tradições e mitos foram inventados com o intuito de promover a prática das artes marciais como algo aceitável dentro do estilo de vida burguês, moderno e civilizado.

Essa articulação entre artes marciais e esoterismo "new age" enquadra-se dentro daquilo que o sociólogo alemão Norbert Elias chamou de o "processo civilizador". Associar por exemplo o Xing Yi Tchuen ou o Tai Chi Chuan com a busca pela espiritualidade pode ser visto como uma manifestação desse impulso civilizador.

Para Elias (1994, p.23) "O conceito de "civilização" refere-se a uma grande variedade de fatos: ao nível de tecnologia, ao tipo de maneiras, ao desenvolvimento dos conhecimentos científicos, às idéias religiosas e aos costumes."Ainda de acordo com Elias (1994, p.202) "a questão por que o comportamento e as emoções dos homens mudam é, na realidade, a mesma pergunta por que mudam suas formas de vida".

Como aponta Brandão (2001, p.98) “Na teoria dos processos de civilização de Elias, constitui um erro querer separar as transformações gerais sofridas pelas sociedades e as alterações ocorridas nas estruturas de personalidade dos indivíduos que a forma”.

Originalmente, como diz Elias (1994, p.193) "o medo reinava em toda a parte e o indivíduo tinha que estar sempre em guarda". Com o passar do tempo, a sociedade se civilizou, e a violência cotidiana presente nos tempos mais antigos cedeu lugar, gradualmente, a um controle cada vez mais rígido dos impulsos agressivos ou de violência. Dessa maneira, estando as artes marciais encontram-se inseridas dentro da sociedade chinesa do final do século XIX e início do século XX, elas tenderam a acompanhar todo o conjunto de mudanças do modo de vida. Elas passaram a incorporar os códigos determinados dentro dessa sociedade para o gradual controle da violência, introduzindo preceitos e costumes aceitos dentro de espaços sociais específicos, sob a forma de valores, para se tornarem mais aceitos pela dinâmica da sociedade. Assim, algumas artes marciais chinesas tiveram uma clara tendência à desportivização, enquanto outras, por outro lado, tenderam para esse envolvimento com misticismo religioso e/ou esotérico, ligadas à idéia de cuidados com o corpo para a obtenção de uma maior espiritualidade. Ou seja, a gradual sublimação de gestos violentos ocorrida no conjunto mais amplo da sociedade teve como efeito, nessas artes, as adaptações necessárias para elas poderem serem aceitas ao longo do século XX. Essa "adaptação" de práticas de combate que se tornaram esportivas ou terapêuticas pode se justificar nas mudanças ocorridas na sociedade, onde muitas das técnicas utilizadas, sejam com armas, sejam com o próprio corpo, tornaram-se obsoletas.

No entanto, a partir dessa tendência à esoterização de algumas artes marciais, foram criadas, com o intuito de sustentar um imaginário poderoso e convincente, uma série de inverdades do ponto de vista histórico, que se perpetuam até os dias de hoje. A maior delas é a noção de "origem", que pretende situar a religiosidade taoísta ou budista como sendo a essência mais profunda desse ou daquele sistema de arte marcial. O que na verdade ocorre aqui é um inversão: não é o sentimento ou impulso religioso que vem primeiro e em segundo vêm as técnicas de artes marciais. São as artes marciais que, inventadas  primeiro, passam depois a serem, em alguns contextos muito específicos e situados, relacionadas a certas crenças religiosas pessoais. No caso do Xing Yi Tchuen, ocorreu que apenas no final do século XIX, especificamente, foi feita essa co-relação entre Xing Yi e taoísmo. Antes dessa época, essa co-relação não existia.

A partir de determinadas interpretações equivocadas, no entanto, muitas pessoas pensam hoje em dia ser o Xing Yi Tchuen uma "arte interna taoísta", cujo treinamento inclui algum tipo de método mágico ou misterioso, ou que seja focado apenas nos exercícios respiratórios (Chi Kung), na meditação e em técnicas de visualização ou mentalização. Ignora-se o imenso repertório motor e a grande quantidade de técnicas de combate e de luta existentes nessa arte, que só podem ser compreendidas quando o Xing Yi é treinado como uma arte marcial, com abordagem também "externa".


 Referencias


BRANDÃO, Carlos da Fonseca. A teoria dos procesos de civilização e o controle das emoções. Revista Conexões, v.6, 2001. UNICAMP-SP.
ELIAS, Norbert. O processo Civilizador Vol. 1: Uma História dos Costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
HENNING, Stanley. The Chinese Martial Arts in Historical Perspective, Military Affairs, Dez. 1981
KENNEDY, Brian. and GUO, Elisabeth. Chinese Martial Arts Training Manuals: a Historical Survey, North Atlantic Books, U.S., 2005.

Ignorância, lendas e Tai Ji Quan (Stan Henning)

Trechos do artigo do historiador Stanley Henning sobre a verdadeira história de um dos chamados "estilos internos do Kung Fu", o Tai Ji Quan (ou Ta Chi Chuan).

Este artigo foi publicado originalmente no Journal of the Chen Style Taijiquan Research Association of Hawaii, Vol. 2, Nº. 3, pp. 1-7.

(…) Foi precisamente devido ao desanimador estado de ignorância que observei cercando a história das artes marciais chinesas que inicialmente publiquei um artigo entitulado “The Chinese Martial Arts in Historical Perspective” (“As artes marciais chinesas sob uma perspectiva histórica”), na edição de Dezembro de 1981 do Military Affairs (Assuntos Militares), agora Journal of Military History (Jornal de História Militar). Eu escolhi um jornal acadêmico para “… tentar extraí-las [as artes marciais chinesas] da esfera do mito e sedimentar o caminho para colocá-las no campo da pesquisa histórica respeitável.” Eu escolhi um periódico sobre história militar para enfatizar o fato (não uma opinião) que as origens das artes marciais chinesas estão enraizadas na prática militar (e não na religiosa).

Agora, 13 anos mais tarde, eu noto que a ignorância ainda parece ser a regra, e não a exceção. Por que? Depois de ler o livro de Paul Crompton The Art of T’ai Chi (A Arte do T’ai Chi – Rockport, MA: Element, Inc. 1993) eu concluí que pelo menos parte da razão deste estado das coisas é porque a frase “ignorância é felicidade” não é apenas um dístico, mas um fato para alguns. Depois de admitir que a história de Zhang Sanfeng [n. do t.: por vezes grafado como "Chang San Feng"] é provavelmente um mito, Crompton diz que “Verdade ou não, a prórpia existência da lenda tende a elevar o T’ai Chi e fazê-lo algo a ser almejado.”
Eu tenho razoável convicção que os assinantes deste periódico não almejam o aprendizado do taijiquan (tai chi chuan) basedos meramente na existência de lendas, como Crompton descreve, mas que estejam interessados em aprender sobre os fatos e possíveis motivos por trás das lendas associadas ao taijiquan (tai chi chuan). No entanto, para isto é preciso examinar o assunto em dois níveis: um da perspectiva da arte marcial, e outro do meio social mais amplo no qual as artes marciais eram apenas um elemento.

Na verdade, a lenda de Zhang Sanfeng pode ser vista como tendo três fases: a fase I (anterior a 1669) meramente afirma que Zhang era um imortal Taoísta; a fase II (após 1669) diz que Zhang originou a escola “interna” das artes marciasi chinesas; e a fase III (após 1900) diz que Zhang originou o taijiquan (tai chi chuan).

A lenda de Zhang Sanfeng apareceu durante o período Ming (1368-1644), baseada na associação próxima entre os governantes Ming e sacerdotes Taoístas, cujas profecias haviam apoiado o fundador da dinastia. Pouco é sabido a respeito de Zhang exceto que ele era descrito como um eremita itinerante e excêntrico, com poderes mágicos, que morreu uma vez e voltou à vida, e cuja vida teria compreendido um período de mais de 300 anos. O Imperador Chengzu (1423-1504) gastou uma quantidade considerável de dinheiro para reconstruir os mosteiros destruídos pela guerra em Wudang, o refúgio favorito de Zhang, e diz-se que uma busca de 13 anos que ele iniciou para encontrar Zhang fora na verdade parte de uma fachada intrincada para um esforço mais urgente de localizar o Imperador Jianwen, vítima de um golpe comandado por Chengzu. Nem o Imperador Jianwen nem Zhang foram jamais encontrados, mas no final o Imperador Yingzong canonizaria Zhang em 1459, num lance que seria sem dúvida aplaudido por Paul Crompton.
Durante esta fase formativa da lenda de Zhang Sanfeng não há menção de um envolvimento seu com artes marciais. A falta de comentários a respeito é significativa, pois era prática comum incluir este tipo de informação nas biografias hitóricas das dinastias.
A primeira referência a Zhang Sanfeng como um mestre de box é encontrada no Epitáfio para Wang Zhengnan (1669), composto pot Huang Zongxi (1610-1695) mas, como indiquei no meu artigo de 1981, a real importância desta composição na sua época não estava tanto nas suas referências ao box quanto no seu simbolismo anti-Manchu. O Epitáfio é a primeira referência na história das artes marciais chinesas a descrever o box em termos de uma escola Shaolin ou “externa” oposta a uma escola “interna” de box, originada por um imortal Taoísta do Monte Wudang, Zhang Sanfeng.
Enquanto o Epitáfio cumpre o seu objetivo de elogio à Wang Zhengnan, ele envia também duas outras mensagens, uma refletindo tendências no pensamento sobre o box e outra de desafio político.
A maior tendência de pensamento sobre o box refletida no Epitáfio é a ênfase no conceito de “repouso” superando o “movimento”, ou o aspecto mental em relação aos aspectos físicos do box. Este não é necessariamente um conceito novo. Yu Dayou advogava isto em seu manual sobre luta com bastão (1565), e a sua base pode ser rastreada até a Arte da Guerra de Sun Zi (c. 476 A.C.)
Este conceito envolve tirar vantagem do movimento do adversário e poderia ser percebido como uma abordagem defensiva contrapondo-se a uma ação ofensiva. Esta abordagem “militar” mais disciplinada estava em dissonância com movimentos mais “individualistas” ou “rebuscados” que caracterizavam estilos mais populares, que eram descritos convenientemente como “box Shaolin” no Epitáfio.
Embora o Shaolin fosse o símbolo ideal para representar os estilos mais numerosos e populares de artes marciais chinesas, isto deu origem a sérios mal-entendidos e, como resultado, trabalhos posteriores a começar do manual de boxe de Zhang Kongzhao (1784) atribuíram a origem do boxe chinês ao mosteiro de Shaolin (não há menção à Bodhidarma até bem mais tarde – c. 1900). Ao mesmo tempo, o mítico Zhang Sanfeng, abençoado com a santidade por um Imperador Ming, serviu de contraponto ideal à arte marcial Shaolin. Afinal, como não se podia provar se o próprio Zhang havia sequer existido ou mesmo qualquer dos seus supostos feitos, não faria mal algum afirmar que ele havia inventado um estilo de arte marcial.
Pode-se dizer que a composição de Huang Zongxi de um epitáfio para um mestre de arte marcial era, em si mesma, um ato de despeito contra a autoridade Qing, a quem ele se recusava a servir, mas o simbolismo de uma escola “interna” de artes marciais representada por Zhang Sanfeng em oposição a uma escola Shaolin “externa” foi o ato maior de desafio político através da literatura. A escola “externa” do mosteiro Shaolin representava o Budismo exógeno, o que simbolizava os agrassores Manchus, enquanto a escola “interna” e Zhang Sanfeng representavam o Taoísmo endógeno, que suplantaria seus opressores. A extensão total do sentimento anti-Manchu de Huang é revelada próximo do final do Epitáfio, onde as datas de nascimento e morte de Wang Zhengnan são gravadas com combinações de caracteres do calendário cíclico de 60 anos em lugar do costumeiro título do reino imperial que, se usado, teria indicado um reconhecimento ao governo Qing. Um historiador notório, Huang incluiu até mesmo uma observação sobre a possibilidade de imprecisões no conteúdo do Epitáfio explicando que ele o escrevera baseado num pedido e em dados fornecidos por um senhor Gao Zhensi.
Fundamentado primariamente nesta composição, mais simbólica que factual, um registro foi feito na edição de 1733 da Gazeta de Ningbo sobre Zhang Songqi, um mestre da escola “interna” de artes marciais do período de Ming Jiajing (1522-1566) e um registro foi feito no Manuscritos Históricos dos Qing sobre Wang Zhengnan. Ambos registros incluem a história de Zhang Sanfeng das origens da escola “interna” de arte marcial.
Em 1727 o Imperador Yongzheng promulgou um edito que instruía oficiais locais a proibirem estritamente o ensino individual de “boxe e bastão”, como eram chamadas as artes marciais. O Imperador Qianlong (1736-1795) comandou uma inquisição literária severa que destruiu muitos escritos do período de 1550 a 1750. Uma antologia dos escritos de Huang Zongxi contento o Epitáfio foi proscrita e destinada à destruição, mas sobreviveu para tornar-se uma fonte importante de controvérsia na história das artes marciais chinesas. Desde então os estilos de artes marciais vêm sendo arbitrariamente rotulados como da escola “externa” de Shaolin ou da escola “interna” de Wudang, e enfim o taijiquan (tai chi chuan) foi rotulado como “interno” e identificado com a lenda de Zhan Sanfeng.
Algumas fontes afirmam que Li Yiyu (1832-1892) teria citado Zhang como originador do taijiquan (tai chi chuan) num manuscrito copiado à mão datado de 1867, mas ele abandonou a referência num manuscrito posterior datado de 1881. Este manuscrito posterior, que Xu Zhedong publicou inicialmente em 1935, meramente afirma que o originador é desconhecido. A tentação de identificar o taijiquan (tai chi chuan) com a escola “interna” de box e a lenda de Zhang Sanfeng é compreensível, no entanto na época teria sido muito arriscado idenficá-lo tão proximamente com uma figura lendária favorecida pelos governantes Ming e associada com os escritos de um patriota Ming, Huang Zongxi.
A ferocidade da inquisição literária do Imperador Qianlong manteve os escritores mais ou menos sob controle por quase um século após o seu reinado. Mesmo o nome “taijiquan (tai chi chuan)” era suspeito e pode não ter sido mencionado fora de um pequeno círculo de praticantes até depois da revolução de 1911. O Imperador Qing Taizong (1627-1643) chamou a si próprio de Imperador Taiji, e havia tabus rigorosos sobre usar o nome de Imperadores. Evidências de que isto pode ter acontecido podem ser vistas na falta de quaisquer menções ao Taijiquan nos Sumários Extra-oficiais Categorizados dos Qing (1917), que devota um volume completo (196 páginas) à histórias de mestres e estilos marciais. A primeira História da Educação Física Chinesa (1919) também não menciona o taijiquan (tai chi chuan) dentre 69 dos estilos contemporâneos mais conhecidos. A maioria do nosso conhecimento sobre o taijiquan (tai chi chuan) data dos esforços de Tang Hao (1897-1959) e Xu Zhedong durante a década de 1930.
Muitos mestres de artes marciais não eram alfabetizados mas a maior parte das informações foi codificada em poemas, memorizada, e passada em frente oralmente apesar das restrições dos Qing. Alguns dos que eram letrados, como Wu Yuxiang (1812-1880) e Li Yiyu, produziram manuais manuscritos caramente guardados, alguns dos quais foram descobertos na década de 1930 e foram editados para apreciação de um público mais amplo.
O primeiro trabalho abertamente publicado associando Zhang Sanfeng com o taijiquan (tai chi chuan) foi o Clássicos do Taijiquan (1912), editado por Guan Baiyi. De acordo com Tang Hao, Guan editou-o para Xu Longhou, que tinha estabelecido a Associação de Pesquisa em Educação Física da Capital em seguida à revolução de 1911. Xu incluiu este material no seu Explicação Ilustrada das Formas de Taijiquan (1921). A alteração flagrante de detalhes vindos de fontes existentes presentes neste livro revela um esforço consciente de forçar a inclusão arbitrária da lenda de Zhang Sanfeng na história do taijiquan (tai chi chuan). A parte mais transparente deste esforço é refletida na substituição de Wang Zongyue (período de Qianlong), a quem é costumeiramente creditada a autoria do mais importante tratado de taijiquan (tai chi chuan), Teoria do Taijiquan, por Wang Zong (deixando de fora o terceiro caracter), que está listado como um discípulo do meio do período Yuan da escola “interna” de box no Epitáfio de Huang Zongxi.
Xu Longhou estudou sob Yang Jianhou (1839-1917), cujo pai, Yang Lucan (1799-1872), trouxe os segredos do taijiquan (tai chi chuan) do vilarejo de Chenjiagou na província de Henan para Beijing (c. 1860), assim o livro de Xu, como a primeira fonte sobre Taijiquan amplamente disponível, colocava o estilo Yang em evidência quando os líderes da nação estavam apoiando fortemente programas de educação física como parte de um esforço geral para fortalecer a disposição nacional contra
incursões imperialistas na China. Seu livro criou um precedente e aqueles que o seguiram, particularmente livros sobre o estilo Yang, tenderam a copiar a história de Zhang Sanfeng a respeito das origens do taijiquan (tai chi chuan). De fato estes ultrapassavam a chamado do dever atribuindo porções dos escritos de Wu Yuxiang à Zhang Sanfeng. Além do mais, que fundador de respeito deixaria de passar adiante algumas pérolas de sabedoria? Wu estaria apenas transmitindo os escritos do fundador. De qualquer forma, quem poderia saber? Na verdade, os “clássicos” mais importantes do estilo Yang são escritos de Wu, exceto pelo Teoria do Taijiquan de Wang Zongyue, e há quem acredite que Wu teria escrito até mesmo este além de ter inventado o termo “taijiquan (tai chi chuan)” em torno de 1854, mas isto é outra história.
Por que parece haver tanta preocupação em associar o taijiquan (tai chi chuan) com a lenda de Zhang Sanfeng entre 1912 e 1921, mais de 60 anos depois de o estilo de arte marcial praticado em Chenjiagou ter recebido o nome “taijiquan (tai chi chuan)” e ter sido levado para o grande centro? A resposta pode estar numa combinação de eventos que começaram com a primeira referência ao “Dharma” ou Bodidharma como o originador do box de Shaolin numa novela popular, As Viagens de Lao Ts’an, primeiro publicada na Revista de Ficção Ilustrada entre 1904 e 1907. Este publicação foi seguida de perto pelo livro entitulado Métodos da Escola de Shaolin, que apareceu como uma série num jornal de Shanghai em 1910. Este livro, de origem incerta mas escrito num tom de sociedade secreta anti-Manchu, expandiu a história de Bodidharma e, em 1915, foi alterado e publicado como Segredos do Boxe Shaolin sob o pseudônimo “Mestre do Estudo sobre Respeito Próprio” (provavelmente uma alusão à sentimentos anti-Manchu e anti-imperialistas).
De acordo com Tang Hao este livro foi tão popular que quase 30 reedições haviam inundado o mercado até 1919, e influenciou outros autores desde então, a começar com a História da Educação Física Chinesa (1919) de Guo Shaoyu, que foi o primeiro livro popular chinês sobre este assunto. Não é difícil ver como os mestres de taijiquan (tai chi chuan) podem ter se sentido pressionados a competir por popularidade contra uma campanha publicitária como esta num ambiente cada vez mais comercial. Sob estas circunstâncias, Zhang Sanfeng era um contraponto à Bodidharma feito sob medida.
A lenda de Zhang Sanfeng tem um apelo popular claro, e à pimeira vista pode ser até um pouco plausível para o popular médio. Este aspecto de relações públicas combina-se com o fato que o taijiquan (tai chi chuan), ao contrário de outros estilos, parece ter respondido mais efetivamente às demandas volúveis da sociedade no último século, de forma a ter evoluído de uma arte marcial pouco conhecida praticada num vilarejo rural para um fenômeno mundial.
Muitas das informações necessárias para se fazer afirmações inteligentes sobre as origens do taijiquan (tai chi chuan) e outros aspectos das artes marciais chinesas está à disposição, mas o que é mais importante é interpretá-las de forma crítica e com mais conhecimento do ambiente social em que estas artes floresceram.




Referências

[1.] Henning, Stanley E., “The Chinese Martial Arts in Historical Perspective,” Military Affairs, Dez. 1981.

[2.] Crompton, Paul, The Art of T’ai Chi (Rockport, MA: Element, Inc., 1993), p. x.

[3.] Seidel, Anna, “A Taoist Immortal of the Ming Dynasty: Chang San-feng”, em W.T. de Bary & The Conference on Ming Thought, eds., Self and Society in Ming Thought (N.Y.: Columbia University Press, 1970, pp. 483-531). O mais abrangente, mas nem sempre preciso, paper sobre este assunto em Inglês. Oferece boa cobertura da fase I da lenda, concluindo que “Suas Biografias e lendas não contêm a mais leve alusão a ele ser um mestre de box…” (p. 484)

[4.] Ibid., pp. 504-505, afirma que a primeira referência está na Gazeta de Ningbo [Ch.], a edição de 1560 não contém tal referência. A referência na edição revisada de 1733 é baseada no Epitáfio de Huang Zongxi [Ch.] (c. 1669) e no Métodos de Box Interno de Huang Baijia’s [Ch.]. p. 505, afirma que a escolha de Zhang Sanfeng como santo padroeiro da escola “esotérica” foi um contraponto ao papel de Bodhidharma na escola Shaolin. A escolha não aconteceu até o século XX.

[5.] Yu Dayou, “Clássico da Espada”, em Antologia Literária do Salão da Retidão [Ch.], 1565.

[6.] Giles, Lionel, trad., Sun Tzu on the Art of War (London: Luzac & Co., 1910), p. 67, linha 30.

[7.] Zhang Kongzhao, ed., Clássico do Box: Fundamentos do Box [Ch.], 1784.

[8.] Henning, p. 176.

[9.] Tang Hao, Pesquisa Shaolin-Wudang [Ch.] (1930), (Hong Kong: Unicorn Press, 1968), pp. 76-77.

[10.] Cao Bingren, ed., Gazeta de Ningbo [Ch.], 1733.

[11.] Manuscritos Históricos dos Qing [Ch.], 1927.

[12.] Registros de Donghua [Ch.], Yongzheng Ano 5, 1727.

[13.] Goodrich, L.C., The Literary Inquisition of Ch’ien Lung (New York: Paragon Books Reprint Corp., 1966), pp. 65, 247. 
[14.] Huang, Alfred, Complete T’ai Chi (Tokyo: Charles E. Tuttle Co., 1993), pp. 47-48, Meng Naichang, “Pesquisa sobre Zhang Sanfeng” na Revista Wudang Magazine [Ch.], Edição Especial de 10º Aniversário 1, 1991, pp. 2436.

[15.] Xu Zhedong, Abordagem Correta e Reconhecimento de Aspectos Falsos dos Manuais de Taijiquan: Edição Combinada [Ch.] (1935) (Taipei: Zhenshanmei Press, 1965).

[16.] Zhao Ximin, “Pesquisa sobre as 13 Posturas do Taijiquan,” em Asoociação de Artes Marciais da República da China, eds., Coleção de Materiais Históricos das Artes Marciais Chinesas [Ch.], Vol. 5, 1980, pp. 85-109.

[17.] Xu Ke, ed., Sumários Extra-oficiais Categorizados dos Qing [Ch.] (Shanghai: Commercial Press, 1917), Vol. 22.

[18.] Guo Shaoyu, História da Educação Física Chinesa [Ch.] (Shanghai: Commercial Press, 1919).

[19.] Tang Hao, Pesquisa sobre o Grão-Mestre de Taijiquan Wang Zongyue [Ch.] (1935) (Hong Kong: Unicorn Press, 1969), p. 2.

[20.] Xu Longhou, Explicação Ilustrada das Formas de Taijiquan [Ch.], (1921) (Taipei: Zhonghuawushu Press, 1970), pp. 8-10.

[21.] Chen Weiming, A Arte do Taijiquan (1925) (Taipei: Zhonghuawushu Press, 1970), pp. 53-70; Zheng Manqing, Os 13 Capítulos de Zheng sobre Taijiquan (Hong Kong: Dongya Press, 1957), pp. 108-114; Sun Fuquan, O Estudo do Taijiquan (1924) (Taipei: Zhonghuawushu Press, 1973), pp. 1-4. NOTA: todos os livros em [Ch.]

[22.] Zhao Ximin, Op. Cit.

[23.] Liu T’ieh-yun (Liu E), The Travels of Lao Ts’an, traduzido e anotado por Harold Shadick (Westport, CT: Greenwood Press, Publishers, 1986), p. 73.

24.] Li Yingang, ed., Explicação Ilustrada dos Métodos da Escola Shaolin (Texto Antigo) [Ch.] (1922), (Hong Kong: Unicorn Press, 1968), críticas de Tang Hao e Xu Zhedong anexas.

[25.] Mestre do Estudo sobre Respeito Próprio, Segredos do Box de Shaolin [Ch.] (1915) (Taipei: Zhonghuawushu Press, 1971), críticas de Tang Hao e Xu Zhedong anexas. [26.] Guo Shaoyu, Op. Cit., pp. 47-49.

Disponível (em inglês) em:

http://seinenkai.com/articles/henning/index.html

Mito e História das Artes Marciais Chinesas

Artigo originalmente publicado em Lessons From a Sifu At Large,
Foi disponibilizado por Marko, em seu blog www.kuoshubr.blogspot.com


Por Wallace Smedley,

Todo artista marcial já contou e recontou a bem conhecida e bem versada estória de Bodidharma. Como ele viajou para a China ao redor de 525 AC. Ele teria visitado o Emperador, que ficou chocado e maravilhado, mortificado e estupefato ao descobrir que Bodidharma não acreditava que o Emperador tinha ganhado qualquer mérito para a próxima vida por todas as suas boas ações nesta vida. Então ele mandou Bodidharma embora. Ele então fez seu caminho por perto do Templo Shaolin. Ali ele teria tentado ensinar aos monges sua visão única do Budismo. Mas achou os que os monges estavam em uma condição física terrível. Então saiu e sentou em uma caverna próxima por nove anos, saiu de sua reclusão e escreveu dois livros, O Clássico da Mudança do Músculo e Tendão, e o Clássico da Essência e Lavagem Cerebral. Ele também criou uma série de exercícios, as Dezoito Mãos de Lohan, que formaram a fundação das Artes Marciais Chinesas, e depois ainda, de todas as artes marciais no mundo.

Em quase todo livro de história das artes marciais ou online irão contar este conto. Mas, infelizmente, esta lenda é apena outra mentira. A lenda de Bodidharma não pode ser traçada antes da popular novela chinesa As Viagens de Lao Can, que foi escrita entre 1904 e 1907. Por razões desconhecidas para mim, ninguém se incomoda em questionar o mito. Na China, o mito tem sido examinado repetidamente. Tang Fan Sheng (Tang Hao) reportou em 1930 que a estória de Bodidharma poderia ser traçada até uma única fonte - o prefácio de Li Jing para o "Clássico da Essecência da Lavagem". Matsuda Takatomo escreveu A História Ilustrada das Artes Marciais Chinesas, que teve pesquisa original, assim como uma revisão do trabalho feito anteriormente por Tang Hao e Xu Jedong. Ele reportou que as cópias mais velhas disponíveis dos clássicos foram escritas em 1827. Existiram livros publicado nesta lacuna de tempo (525 A.C. - 1827 D.C.) que mencionam Shaolin, mas parece que o Templo Shaolin ganhou notoriedade pela técnica de bastão, não boxe de mãos vazias. E mesmo essa notoriedade não era altamente elogiada por todos. Existem alguns escritos contemporâneos que mantém o bastão Shaolin em baixa consideração. Então, parece que no mundo dos fatos, o Boxe Shaolin não é a origem de todas as artes marciais. Boxe Shaolin não é nem mesmo a origem do Boxe Shaolin!

Bodidharma não criou as Artes Marciais Chinesas. E mesmo sem tentar desmerecer a lenda de Bodidharma, devem olhar para as toneladas de evidências arqueológicas mostrando claramente que as artes marciais eram praticadas na China muito antes do templo Shaolin sequer ser construído. Mesmo se Bodidharma tivesse feito tudo o que dizem dele (ele não fez), significa muito menos se as Artes Marciais Chinesas já existiam anteriormente dele sequer estar lá. Devemos pensar um pouco sobre os exercícios que são ditos serem criação de Bodidharma e que supostamente evoluíram para as Artes Marciais Chinesas, e refletir sobre o quanto de evolução estamos falando. Os exercícios não são nada parecido com qualquer arte marcial. O chamado 18 Mãos de Lohan são uma série de exercícios calistênicos básicos que não guardam qualquer semelhança com artes marciais. Tudo foi pesquisado e exposto como mentira pelo artista marcial historiador Tang Hao. E o mundo parou de contar as mentiras quando Tang Hao expôs a verdade em meados de 1930? Não! Isso faria muito sentido! Ao invés disso, a comunidade de artes marciais, quase como se tivessem se encontrado e discutido a questão (eles não fizeram), ignoraram a pesquisa e a apresentação dos fatos por Tang Hao na história das Artes Marciais Chinesas. Todos optaram por perpetuar a mentira de Bodidharma. Porque queriam manter a falsa estória está além do meu conhecimento. O fato é este; as Artes Marciais Chinesas não se originaram no Templo Shaolin. Elas se originaram com os Militares de diversas cidades estado que eventualmente se tornaram as várias dinastias que vieram a ser a China.

Parte da facilidade em acreditar no mito, a parte da massiva quantidade de repetições pelas chamadas autoridades, está no desligamento que o nosso mundo moderno tem no que são chamadas "artes marciais", e a disciplina militar. Em um sentido antigo, uma arte marcial deveria ser treinamento militar. De algum maneira este desligamente rastejou para nosso senso comum, e em nossos tempos modernos, falhamos em ver isso a não ser que seja esfregado na nossa cara. Seria extremamente absurdo afirmar que a China não teria qualquer treinamento militar padrão até mais ou menos muitas décadas ou possivelmente séculos que as 18 Mãos de Lohan de Bodidharma levou para se desenvolver até o Boxe Shaolin. E na China, era comum a prática do recrutamento de civis para o serviço militar (em tempo modernos, isso seria chamado de alistamento). Pessoas tinham que saber como se proteger. E eles tinham que ter alguma habilidade, mesmo que pequena, no uso de arma, como agora; combate mão contra mão deveria ser apenas um último recurso. Todos os soldados sabem disso. As reais artes marciais nunca começaram como um esporte, não importando seu país de origem. Era algo sério, treinamento de vida ou morte para o exército.

Os mitos e as mentiras que cercam o Templo Shaolin são perpetuados por pessoas que não querem ser expulsas "do grupo" das artes marciais. Ou, talvez, é apenas muito mais fácil carregar a velha estória que todos já ouviram, do que dizer a verdade e ter que explicar para as pessoas que já acreditam na mentira. Adicione a isso o fato de que, assim como era na geração anterior na China, as pessoas pegam as figuras lendárias e tecem uma tapeçaria intrincada de mentiras para conectar seu estilo ou sistema com esta figura lendária. Eles seguem esta antiga prática para legitimizar seu estilo, ou talvez para adicionar alguma notável glória para a arte. Esta é uma prática comum ainda hoje. Quantos estilos clamam que possuem algum fundador morto a muito tempo que aprendeu o sistema enquanto trabalhava como servo na casa de alguém? Veja o seguinte:


Um excerto:

"Yang Lu Chan é a pessoa mais importante na filogenia do Tai Chi Chuan. A estória de Yang Lu Chan aprendendo Tai Chi Chuan é muito famosa na China. Então, quando era contador na loja de medicina herbal da família Chen em sua cidade natal, no Condado de Yong Nian, Província He Bei. Depois, ele teria sido enviado a Chen Jia Gou, Condado de Wen Xian, Província Henan, cidade natal da família Chen, por seu brilhantismo, trabalho duro e honestidade. Chen Chang Xing estava ensinando Tai Chi Chuan em Chen Jia Gou, e Yang Lu Chan desejava muito aprender Tai Chi Chuan de Chen Chang Xing. Mas ele não podia realizar seu sonho por causa das severas restrições familiares. Então Yang Lu Chan começou a aprender Tai Chi Chuan por conta própria, espionando e ouvindo cuidadosamente enquanto Chen Chang Xing estava ensinando seus estudantes, então praticando e exercitando sozinho secretamente. Pouco a pouco suas habilidades melhoraram até uma certa extensão.

Uma noite alguns anos depois, o segredo foi descoberto por Chen Chang Xing quando Quang Lu Chan estava praticando Tai Chi Chuan. De acordo com os tradicionais círculos de Wushu, era uma erro muito temido e um tabu aprender kung fu do outros secretamente. E o aprendiz deveria ter abolido de seu corpo o kung fu se tivesse sorte, sendo morto se tivesse azar. Mas Chen Chang Xing não fez isso, porque era bondoso e, inspirado pela honestidade e diligêngia de Yang Lu Chan. Então, o aceitou como seu estudante. Desde então, Yan Lu Chan seguiu Chen Chang Xing e aprendeu seriamente Tai Chi Chuan por 18 anos, e finalmente entendeu a essência do Tai Chi Chuan."

E isto:

Jeong Him, onde podemos ler:

"Desde a chegada deles em King Mui, os dois conheceram Chan Heung, o instrutor chefe de kung fu ali. Jeong Kwan explicou a situação para eles mas se confrontaram com o infeliz fato de que, aqueles sem o sobrenome Chan não eram permitidos residir no vilarejo deles e aprender seu kung fu. Mas Jeong Kwan pleiteou até Chan Heung inventar um plano. Ele poderia cuidar dos garotos, mas apenas como uma babá. No entanto, o jovem Jeong Yim não tinha permissão de aprender o kung fu do vilarejo. Um acordo que foi feito em 1836, Jeong Kwan deixou seu jovem sobrinho com Chan Heung.

Durante suas tarefas diárias, o jovem Jeong Yim observava os estudantes praticarem o kung fu. Desde que ele já era talentoso aos 12 anos, foi capaz de aprender o Choy Lee Fut de Chan Heung muito rápido. Naquele tempo, Choy Lee Fut era baseado nos estilos ensinado pelo Monge Choy Fook, e Lee Yau San. Jeong Yim já era familiar com o sistema Lee Ga, que ironicamente partilhava o mesmo Shifu. Então durante a noite, enquanto todos dormiam, Jeong Yum praticava seu kung fu roubado até que foi capturado no ato por Chan Heung." 

Vê alguma similaridade? Eu poderia continuar com diversos estilos diferentes que clamam ter esta estória como parte de sua "história", mas isto seria divagar muito fora do assunto. Irei salvar para outro dia. Por enquanto irei apenas dizer rapidamente que esta estória é tão disseminada que possivelmente se original em alguma novela de Wu Xiao na China. É possível, suponha, que alguma dessas artes esteja contando uma estória autêntica, e que todas as outras que a usam tenham roubado sua história, mas eu sinceramente duvido. 

Outro problema ocorre quando começamos a pesquisar as artes marciais do sul da China, cuja mais pesquisa naturalmente se encaminharia, sendo que ultimamente estava tentando escrever sobre a história do Hung Gar.

Se você viajar para a província de Fujian na China, e visitar diversas cidade, irá descobrir diversos sítios que clama ser o Templo Shaolin do sul. Colocado simplesmente - não existe qualquer rastro de evidência que tal templo tenha sequer existido. Existe alegações em cima de alegações, mas as referências mais antigas sobre o Templo Shaolin do sul são achadas no manual de adesão do século 19 chamado Segredos do Boxe Shaolin, que é uma referência para muitos desses mitos, e as pessoas parecem, por décadas e décadas, tratar isso como um fato. Até hoje, as alegações desta única fonte são tratadas como fato! O termo "de acordo com a tradição" é usado para apagar a necessidade por uma real pesquisa. Este livro era um pouco mais que uma tentativa das sociedades secretas em "juntar" os diversos mitos que cercavam as Artes Marciais Chinesas. O manual fez de Bodidharma o fundador do Chan (Zen), apesar desta doutrina estar bem estabelecida no tempo dito que Bodidharma residiu no Templo Shaolin. Esta colcha de retalhos pegou estórias sem fundamentos, e apresentou todas como um fato. Também providenciou a oportunidade para a sociedade Hung Mun alegar ter sido fundada por algum monge renegado de um templo que não existiu. Isto permitiu que recrutassem através da promoção de um sentimento anti Qing pelo país. Tang Hao e Xu Jedong expuseram todas essas fantasias em meados de 1930, e Stanley Henning trouxe de volta o assunto no final dos anos 80 e começo dos 90, mas a corrente principal da comunidade de artes marciais se agarram nesta fabricação como se sua inteira existência dependesse disso. O pobre Seen Sim See é dito ter sido o sobrevivente da destruição no Templo Shaolin do norte. Algumas vezes ele é um dos cinco ancestrais que sobreviveram ao Templo Shaolin do sul. Para amenizar essa discrepância, muitos "historiadores" de artes marciais clamam que ele sobreviveu a destruição no norte e fugiu para o do sul, apenas para sobreviver à destruição ali também! Isso que é falta de sorte! E sempre que se menciona os Cinco Ancestrais, deve saber claramente qual versão da estória está falando - a Hung Mun ou a do Hung Gar. Apesar de ambas supostamente serem a mesma coisa, os sistemas de kung fu do sul clamam uma versão diferente do que as Tríades. Se alguém for dar uma olhadinha no que estava acontecendo na China naquele tempo, se torna claro que a Sociedade do Céu e da Terra estava nutrindo um sentimento anti Qing para recrutar membros. Parece que inventar uma história era tão popular quanto hoje.

Também existe um mito de longa data baseado nos dizeres chineses "Bei Tui, Nan Quan", que é, em português, "Pernas do Norte, Punhos do Sul". A linha geral disto é que as áreas do norte da China são vastas planícies ou montanhas. Assim, as pessoas viajavam basicamente em cavalos, então teriam desenvolvido fortes pernas. No sul, a estória continua, as ruelas eram pequenas, e lotadas, e existiam mais pântanoso, então as pessoas viajavam por barcos ou a pé.

Uma idéia mais plausível foi proposta em 1998 por Stanley Henning de que o combate mão a mão dos militares deveriam ser ponte curta (combate próximo), ou boxe curto, em oposição aos mais floridos e bonitos boxe longos das regiões do norte. Em adição a esta visão estão os fatos do recrutamento militar nas regiões do sul devido as repetidas invasões pelos piratas japoneses. Quando este fato é levado em consideração, é possível ver claramente que as densamente povoadas cidades do sul, sendo assediadas pelos piratas japoneses, e a população local sendo recrutada para o serviço militar = boxe de ponte curta no sul. No combate real, especialmente em circunstâncias que os militares se encontravam em situações de combate corpo a corpo, os extravagantes chutes altos (que os artistas marciais adoram realizar mas silenciosamente admitem serem inúteis em uma luta) não são vistos. Pode-se ver como os estilos sulistas de Artes Marciais Chinesas tiveram um desenvolvimento seguindo uma linha diferente, e desenvolveram uma mentalidade diferente do que os floridos boxe longos do norte. Não é realmente tão complicado.

Então como as técnicas militares se tornaram os elaborados sistema de kung fu que vemos hoje? Que tal sobre aqueles técnicas que mostram claramente não ter propósito marcial qualquer? Mito e imbecilidade rastejam em uma mistura aqui, e nós acabamos com uma linha estúpida sobre o qual não sabemos mais qual o sentido porque alguém morreu e nunca disse ao seu mais confiável discípulo. Então nos dizem que devemos precisamos realizar uma tonelada de estudos profundos sobre a aplicação. Apenas raramente a verdade virá a tona. A crua verdade é que essas técnicas que não fazem sentido algum foram colocadas para deixar as formas mais interessantes para performances nas ruas ou na Ópera Chinesa. Antigamente na China, um artista marcial tinha apenas algumas opções com relação a empregos. Basicamente, você poderia ir para algum exército, trabalhar em segurança privada, ou trabalhar como artista de rua. Apenas mais tarde as escolas de artes marciais públicas se tornaram uma opção.

O Hung Gar possui uma falsa história, e uma real. É apenas que a história real não é tão excitante quanto a falsa. As pessoas da região do sul da China praticavam um tipo de boxe de ponte curta que se tornou conhecido como Hung Gar. Não é uma arte marcial menos brutal pela fabricação desta história. Parece que as artes marciais tem um problema real com a verdade de qualquer forma - veja quantas mentiras na história do Taekwondo! 4.000 anos de história que nada! Então parece que, reconfortantemente, o Hung Gar não está sozinho. Todos os sistemas de Shaolin do sul enfrentam o mesmo dilema.

Eu tinha cerca de cinquenta páginas escritas sobre a história das Artes Marciais Chinesas e da China quando eu comecei a realmente pensar sobre o mito de Bodidharma, e como eu li algumas explicações que desacreditavam o mito inteiro. Comecei a fazer pesquisas mais profundas de recursos mais confiáveis (ex. não de artes marciais) e descobri toneladas de informações.

Aqui estão algumas das referências para leituras mais aprofundadas neste assunto. Se sentir a necessidade de lançar pedras online em mim, por favor seja esperto o suficiente e leia as informações nas referências primeiro. Não sou o único aqui fora proclamando a verdade.

Ou vá ao Google Scholar, ou Jstor. Toda vez que for até um website de uma escola de artes marciais regular, ele estão te vendendo alguma coisa.
  
Referências:
  • The Chinese Martial Arts in Historical Perspective, S. Henning (Dec. 1981)
  • On Politically Correct Treatment of Myths in the Chinese Martial Arts, S. Henning (1995)
  • Shaolin-Wudang Research, Tang Hao (1930)
  • Chinese Martial Arts Training Manuals A Historical Survey, B. Kennedy and E. Guo (2005)
  • The Riddle of the Southern Shaolin, C. Toepker
  • Damo: Conspiracyof Ignorance, C. Toepker

Mito das Artes Marcias do Monastério Shaolim

Artigo originalmente publicado no Jornal da Associação do Havaí de Pesquisa do Estilo Chen de Taijiqan, Vol. 5, No 1, 1999.

Disponibilizado por Marko em seu blog www.kuoshubr.blogspot.br



Mitos das Artes Marciais do Monastério Shaolin

Parte I: O Gigante com o Bastão Flamejante

Por Stanley Henning

Este artigo foi o primeiro de uma série feito para revelar as circunstâncias ao redor dos mitos associados com as Artes Marciais Chinesas e providenciar uma visão mais acurada do ambiente histórico em que as artes marciais floresceram na China durante os séculos.
A maioria desses mitos são relacionados ao papel do Monastério Shaolin, e eles tem exagerado a imagem do monastério fora da proporção de sua real importância. Como resultado, aparenta existir um equívoco de que as Artes Marciais Chinesas, especialmente o boxe, foram principalmente o produto de "...místicos monges marciais em seus monastérios nas montanhas..."{1}. Na realidade, nada poderia estar mais longe da verdade. As artes marciais são um aspecto das cultura popular chinesa muito difundida, e sua prática no Monastério Shaolin foi uma reflexão desse fenômeno na sociedade como um todo. Uma combinação única de fato e ficção associada com o monastério, no entanto, tem sido visto como o centro do foco para as Artes Marciais Chinesas em geral e a casa do boxe chinês em particular. Esta visão está distorcida ao seu máximo.

Invasões pelo Imperador Wei do norte em 44AD nos monastérios dentro e ao redor de Changan (agora Xian) que descobriu esconderijos de armas, indicam que os monges chineses provavelmente praticaram artes marciais antes do Monastério Shaolin ser fundado em 495 AD{2}. Em primeiro lugar, os monges vinham das fileiras de uma população entre as quais as artes marciais foram amplamente praticadas, antes da introdução do budismo. Em segundo, os monastério, assim como latifúndios, eram a fonte de uma riqueza considerável e necessitava de proteção, a qual teria que ser providenciada pela própria mão de obra do monastério. O Monastério Shaolin não era excessão a esse respeito.
A fama do Monastério Shaolin como berço dos monges guerreiros data de 605-618 AD, com o colapso da Dinastia Sui e a ascensão da Tang. {3}Uma tabuleta de pedra erguida em 628 AD e ainda em pé no chão do monastério relata que os monges primeiro repeliram um grupo de saqueadores, em um processo que o monastério sofreu considerável dano. Então, treze monges ajudaram a capturar Wang Shi-Chong, que era uma ameaça à nova dinastia. Este último ato salvou o monastério de sua dissolução, que foi o destino de outros monastérios naqueles tempos, e pavimentou o caminho da associação especial do Monastério Shaolin com as artes marciais, no entanto, não existe qualquer registro de alguma arte marciail específica até o século 16.


Durante o longo período entre 628 e 1517, não existe nem mesmo um único registro histórico dando pistas de que artes marciais eram praticadas no Monastério Shaolin, então, apesar do desfile de famosos visitantes que escreveram suas impressões para a posteridade durante o mesmo período. Em outro lugar, no entanto, existem registros do sacrifício heróico do monge Zhen Bao, quando ele tentou defender o Monte Wutai em Shanxi, contra uma força de Jin (c. 1126), e cita outro monge, Wan An, da Província de Jiangsu, como tendo dito: "Em um tempo de perigo eu preencho os deveres de um general, quando a paz vem eu volto a ser um monge" (c. 1275){4} Então, em 1517, após quase 1000 anos de silêncio, os Monges Shaolins ergueram uma tableta de pedra em honra ao espírito de King Jiannaluo, que dizem ter transformado ele mesmo de um cozinheiro ordinário em um gigante feroz brandindo um bastão flamejante para assustar um grupo de saqueadores do rebeldes do Turbante Vermelho (c. 1351).

Segundo este incidente alegado, o Bastão Shaolin se tornou uma arte marcial amplamente reconhecida, e, pode-se ler uma série sobre práticas de artes marciais lá, registradas pelos visitantes do monastério durante o século 16. Também, do Ming até a maior destruição do edifício do monastério em 1928, existia um hall dedicado a imagens do King Jinnaluo.

A história de King Jinnaluo ainda pode ser vista em murais na parte de trás a direita da parede do Hall da Túnica Branca do Monastério Shaolin. Contradizendo sua história, no entanto, existem outros registros oficiais do monastério, discretamente ignorados pelos monges Shaolins e outros durante os séculos, revelando que o monastério tinha sido na verdade invadido no final de Yuan (c. 1357-59), com metade de seus edifícios destruídos e seus residentes expulsos para outras localizações até que fosse seguro retornar diversos anos mais tarde. {5}


Apesar de ser difícil provar conclusivamente, aparentemente pelo cenário acima, os Monges Shaolins usaram a colorida história de King Jinnaluo para desviar a atenção da sua embaraçosa realidade de que eles teriam, ao contrário de Zhen Bao e seus seguidores no Monte Wutai, abandonaram o monastério em face da derrota. Este assunto aparentemente nunca tinha sido levantado, até o historiador pioneiro chinês, Tang Hao (1897-1959) pesquisou isso. {6} Apesar disso, mesmo hoje, a maioria do escrito em chinês e em outras línguas invariavelmente negligenciam completamente ou inconscientemente esta informação, desviando essa informação ainda para mais longe citando "histórias" ficcionais de sociedades secretas, clamando que o monastério teria sido queimado totalmente por oficiais de Qing (outro mito).

É possível que a estória do gigante com um bastão flamejante seja meramente uma descrição embelezada do incidente que realmente aconteceu no monastério antes da sua destruição. Mas, apesar das circunstâncias exatas que criaram o mito, foi criada para servir como um aviso aos monges para manter a atitude de "vigilância mesmo em tempos de paz", assim como uma mensagem psicológica para frustrar potenciais transgressores. Em outras palavras, o mito era tão importante quanto a realidade para defender o monastério.

Como Monastério Shaolin ficou amplamente conhecido por sua técnica de Bastão Shaolin durante a Dinastia Ming provavelmente é melhor explicado como o resultado da má experiência dos monges durante o final de Yuan. Eles se determinaram a nunca mais serem colocados em tal situação embaraçosa e reforçaram seriamente seu treinamento em artes marciais. Sua fama como "Monges Shaolins Soldados" alcançou seu ápice nas operações anti pirataria durante meados de 1500; esta fama, no entanto, realmente descansou sobre os louros de alguns indivíduos e incidentes, ou uma combinação de mito e realidade.


O General Yu Da-You (1503-1580) visitou o monastério uma vez e ficou desapontado com o que viu, então seleciou um grupo de jovens monges que o acompanharam no campo, receberam treinamento intensivo, e retornaram para levantar o padrão de seus compatriotas. {7} Cheng Zong-You (1561-?), que escreveu o manual ilustrado do bastão, lança, espada japonesa e besta, clamou ter despendido 10 anos estudando bastão no monastério, mas considerou apenas poucos nomes de professores que eram dignos de serem mencionados. Um deles, o monge Hong Zhuan, estava em seus 80 anos na época, então Cheng estudou sob um de seus melhores estudantes, Guang An. {8} As técnicas de lança de Hong Zhuan foram preservadas nos Registro de Arma por Wu Shu (1611-1695). Eles revelam a possível influência da visita do General Yu ao monastério em sua explicação da "suavidade" e "estocada" ou "mergulho" da lança. {9}

Ao pesquisar as circunstâncias históricas em torno da qual o mito surgiu, em vez de meramente relacionar o mito propriamente dito, podemos entender melhor o real papel das artes marciais na sociedade chinesa daquele tempo. As artes marciais eram as armas do período e foram usados pelos militares para defender as fronteiras da China, e os monges do Monastério Shaolin para defender seu monastério, e outros para variados propósitos. A fama do Bastão Shaolin floresceu com as cinzas do desastroso incidente, que foi jogado para a obscuridade por um mito colorido de um gigante com um bastão flamejante.

Notas
1. Henning, Stanley E., "The Chinese Martial Arts in Historical Perspective," Military
Affairs (now Journal of Military History), December 1981, p.173.
2. Wei Shou 魏收, Wei History 魏書, Shanghai: Zhonghua Shuju, 1936, juan 114, p.
6a.
3. Tang Hao 唐豪 Shaolin Wudang Research 少林武當考 (Shaolin Wudang Kao),
1930, Hong Kong: Unicorn Press, 1968.
4. Li Chi, trans., The Travel Diaries of Hsu Hsia-K'o, The Chinese University of
Hong Kong, 1974, note 17, pp.253-4.
5. Matsuda Ryuji 松田隆智, An Outline of Chinese Martial Arts History 中國武術史略
(Zhongguo Wushu Shi Lue), trans. Lu Yan and Yan Hai, Sichuan Science and
Technological Press, 1984, pp.47-51.
6. Ibid.
7. Yu Dayou俞大猷, Anthology from the Hall of Uprighteousness 正氣堂集 (Zheng
Qi Tang Ji), 1566, Boshanjingshe, 1934, Continuation juan 2, pp.7a-8a, 10b.
8. Cheng Zongyou 程宗猷, (Chongdou 沖斗),   Explanation of Shaolin Staff
Methods 少林棍法闡宗 (Shaolin Gunfa Chanzong), c.1621, Taibei: Hualian Press,
1975, pp.2-3.
9. Wu Shu 吳殳, Record of the Arm 手臂錄 (Shou Bi Lu), in Zhihai, 1846 (1935
edition, Vol 33-40), Addended juan, pp. 8b-10a.

As quatro fases das Artes Marciais Chinesas

Isso é parte do artigo de Brian Kennedy e Elizabeth Guo na revista "Classical Fighting Arts" sobre as quatro fases historicas das Artes Marciais Chinesas.
Disponibilizado por Marko em seu blog www.kuoshubr.blogspot.com






As Artes Marciais Chinesas em existência hoje são a consequência de quatro fases; todas as quais ocorreram nos ultimos 100 anos. As quatro fases são:


1. A fase original das Artes Marciais Chinesas de aldeia militar

2. A fase da Associação Jing Wu

3. A fase do Kuoshu Nacional

4. A fase do Wushu da China Comunista

Cada fase trouxe algo novo ao desenvolvimento das Artes Marciais Chinesas.

Até por volta de 1900 as Artes Marciais Chinesas eram conduzidas nas forças armadas por membros na ativa ou em aldeias rurais onde as Artes Marciais eram praticadas como recreação para criancas ou por adultos que estavam envolvidos na defesa da aldeia como parte das milícias. Em termos mais simples, se você era um adulto treinando artes marciais, você estava se preparando para lutar como parte de alguma forma militar organizada. Treino nas artes marciais não era um hobby para adultos, recreação ou passatempo, era uma habilidade. Treino nas artes marciais no senso da milicia de aldeia militar pôs grande ênfase no treino de armas. A maioria do tempo era usado para treino em formações com lanças (Qiang), bastões (Gun), facões (Dao) e escudos (Pai). Taolu de mãos e treinos solo, que eram longos e complicados, eram uma pequeníssima parte do treino. Também, treino era à "porta fechada", isso quer dizer que uma pessoa estranha (que não era da aldeia) não chegava lá com seu talão de cheques e dizia para um instrutor militar ou da milícia de uma aldeia: "Eu quero aprender a sua arte marcial, ensine-me, aqui está o meu dinheiro" - Não era assim que a coisa funcionava.

A primeira escola de artes marciais pública, onde uma pessoa podia basicamente entrar pela porta pagar a mensalidade e se increver, foi a Associacao Jing Wu que abriu as portas em 1909 e começou uma era nova no treino das Artes Marciais Chinesas. A época que a Jing Wu foi a mais bem sucedida, foi de 1920 a 1925.



A ideia da Jing Wu de instrução ao público foi expandida no fim dos anos 1920 e início dos anos 1930 pelo Projeto de Kuoshu patrocinado pelo governo. O Projeto Nacional de Kuoshu levou a idéia da Jing Wu um passo adiante. a Jing Wu fez as Artes Marciais Chinesas acessíveis ao público, o Projeto Nacional de Kuoshu queria fazer as Artes Marciais Chinesas amplamente acessiveis e criar um programa de Artes Marciais Chinesas padronizado que seria, em algum senso, uma ferramenta das posições políticas e ideais do governo (Nacionalista). A Jing Wu era privada, o programa de Kuoshu Nacional era do parte do governo. A Jing Wu era basicamente um projeto das cidades litorâneas com um numero limitado de ramos (academias), o programa Nacional de Kuoshu foi previsto para ser por toda a nação, com ramos em todas as escolas públicas na China. A "época de ouro" do programa Nacional de Kuoshu foi de 1928 até 1937.

Depois que a poeira (e sangue) se amenizou da Guerra Civil Chinesa e a República Popular da China saiu vitoriosa, aquele governo (RPC) quis continuar o programa Nacional de Kuoshu do governo Republicano. O governo Comunista começou a trabalhar em um programa de Wushu Nacional. Quando as pessoas ocidentais falam de "wushu" normalmente estao se referindo a esse projeto (Guan Ban Wushu). O que o projeto de Wushu Nacional quis criar foi rotinas muito mais exigentes fisicamente que envolviam muito mais movimentos de ginástica e converter as Artes Marciais Chinesas para um esporte competitivo de alto nivel do tipo que é a ginastica olímpica e patinação artística. O programa de Wushu Comunista também fez um esforço grande em remover as aplicações de luta e o aspecto de combate do treino. Essas mudanças aconteceram entre 1959 e 1961 e continuam até hoje. Wushu poderia talvez ser descrito como um tipo de dança folclórica ou ginástica de solo muito exigente, com movimentos derivados dos sistemas de Artes Marciais Chinesas. Que nos traz ao seculo 21.

O lugar da Associação Jing Wu na história das Artes Marciais Chinesas é muito importante, pois marca a transição das Artes Marciais Chinesas de serem trabalho manual associado com o serviço militar, milícias e guarda-costas, a uma forma de recreação cultural. A realidade é que essa mudança teria acontecido com ou sem a existência da Associacao Jing Wu, mas a Jing Wu apareceu, e com seu aparecimento e  a existência que teve (e tem), marcou uma grande transição em como as Artes Marciais Chinesas eram praticadas; artes marciais como combate e artes marciais como método de recreação."


por Brian Kennedy

Espero que esse texto ajude o pessoal a entender melhor esses 60 e poucos anos (antes de 1909 até nos anos 1960) das Artes Marciais Chinesas e entendam também o processo que ela passou para chegar onde estamos hoje.

Nem todos seguiram a rota das Artes Marciais Chinesas na China Comunista, vários levaram a rota de Taiwan, Hong Kong, Macau, Singapura etc... onde as Artes Marciais Chinesas não sofreram essas últimas tranformações. Porém isso não quer dizer que elas continuarão assim. Isso vai depender de como tratamos o que temos e como evoluimos o que praticamos...